quarta-feira, 1 de maio de 2013

“BELO E SERENO”

quarta-feira, 1 de maio de 2013 - 13:55
Por Flávio Gomes

Grande Prêmio

SÃO PAULO (como todos) – Em maio de 2004, no décimo aniversário da morte de Ayrton Senna (hoje faz 19; o tempo passa, o tempo voa e nem poupança do Bamerindus tenho mais…), fui atrás da médica Maria Teresa Fiandri. Foi ela quem recebeu o piloto no Hospital Maggiore de Bolonha. Queria conversar com ela sobre o acidente, sobre aquele domingo, sobre os dias seguintes à tragédia.



Era uma dívida que tinha comigo mesmo. Na semana do acidente, foi a única pessoa que quis muito entrevistar e não consegui. Entre outras coisas porque me demiti do jornal. E, de certa forma, ela foi a grande responsável por umas das matérias mais importantes que fiz, minha última na “Folha”. Porque a forma que imaginei para chegar a ela passava por encontrar uma antiga namorada que eu sabia que tinha voltado à Itália, 13 anos antes, para estudar medicina em Bolonha. Encontrei essa ex-namorada procurando a doutora Fiandri. Cristina, o nome dela, tinha se formado em Bolonha e trabalhava como médica legal. Fez parte da equipe que realizou a autópsia em Senna. E me contou muita coisa sobre a morte, o estado do piloto, detalhes que só mesmo quem chegou muito perto teria condições de relatar.
Foi uma boa entrevista, essa com a doutora Fiandri dez anos depois. Mas, curiosamente, meu gravador não funcionou. Tenho problemas com gravadores quando se trata do Senna. Ainda em 1994, eu e o Nilson Cesar, então meu colega de Jovem Pan, fomos à quinta perto do Estoril onde estava vivendo Adriane Galisteu. A casa pertencia ao Braguinha, empresário conhecido, ex-presidente do Bradesco, muito amigo de Senna e tal. Adriane ficou lá por meses depois da morte do namorado.
Era a primeira vez que a namorada de Ayrton falava após o acidente e fizemos ao vivo, por telefone, durante o programa “São Paulo Agora”, da Pan. Era semana do GP de Portugal. Ficou ótima e está gravada nos arquivos da rádio, possivelmente. Mas eu também gravei. Coloquei o gravador ali do lado, play e REC e vamos embora. Quando terminamos, entramos no carro e eu disse ao Nilson: vamos escutar pra ver se ficou legal. Coloquei no toca-fitas, estava tudo OK, boa tarde ouvintes, estamos aqui em tal lugar e tal, começo, primeira pergunta, segunda e, de repente, silêncio total. Por alguma razão, o bendito gravador parou de gravar. Nunca vou entender essa porra. Fiz todos os testes e estava funcionando direitinho. Mas não gravou a Adriane na quinta de Portugal. Só o começo.
Com a doutora Fiandri foi parecido. O Fábio Seixas estava comigo e deve lembrar de mais detalhes. Ou o gravador não funcionou, ou eu apertei o botão errado, ou esqueci de levar um gravador. Só sei que não gravei. Por sorte, anotei as respostas num bloquinho. E, também curiosamente, elas estavam muito bem gravadas na minha cabeça, de forma clara e cristalina, quando sentei para escrever o texto.
Enfim, essa entrevista foi publicada quando este blog ainda não existia e acho que não coloquei aqui antes. Então coloco agora.
O prédio é idêntico aos milhares que perpassam a paisagem das cidades do norte da Itália: baixo, quatro andares, pintado de bege, numa rua tranquila e arborizada da periferia de Bolonha. Via dei Lamponi, número 1. Ali, no segundo andar, vive a pessoa que avisou ao mundo, há dez anos, que Ayrton Senna não mais vivia. Foi por suas mãos que ele passou ao chegar ao Hospital Maggiore, 32 minutos depois de bater no muro da curva Tamburello, em Imola, a 35 km dali. Foi de sua boca que saiu, após uma agonia de quatro horas, a notícia que abalou as estruturas da Fórmula 1, chocou o mundo e deixou um país dobrado sobre sua própria dor.
A médica Maria Teresa Fiandri parou de trabalhar no Maggiore em 2001, depois de 36 anos de serviços. Naquele 1º de maio, era a chefe do setor de Anestesia e Reanimação. Como sempre, desde que o circuito passou a receber a F-1, em 1980, fazia parte das equipes de emergência que poderiam ser chamadas a qualquer momento para atendimento em casos de acidente.
Naquele 1º de maio, não precisou esperar o bip convocá-la. Quando Senna bateu, ela se levantou, vestiu o jaleco branco e já estava pronta para sair de casa rumo ao hospital quando o piloto mexeu a cabeça pela última vez.
Fiandri estacionava seu carro no pátio reservado aos médicos do Maggiore quando viu o helicóptero cor-de-laranja se aproximar. Trazia Senna e uma equipe de reanimação que tentava mantê-lo vivo. No helicóptero mesmo ele já havia recebido uma transfusão de 4,5 litros de sangue.
Ayrton tinha batido na abertura da sétima volta do GP de San Marino, a segunda sem o safety-car na pista. Seu carro, na entrada da Tamburello, guinou para a direita. Ele freou e reduziu marchas, de acordo com a telemetria. O impacto frontal, às 14h12 locais, aconteceu a 216 km/h. A barra da suspensão dianteira direita voltou-se contra o capacete, penetrou a viseira e atingiu sua cabeça pouco acima do olho direito. Ele morreu na hora. “Da pista, o doutor Gordini já tinha me avisado que havia pouco a fazer”, conta Maria Teresa.
Mas, como todo médico, Maria Teresa Fiandri fez o possível, mesmo sabendo que o quadro era irreversível. “Do ponto de vista cerebral, já não havia mais atividade imediatamente após a batida. Ele chegou ao hospital com o pulso fraquíssimo, quase sem pressão. Mas, depois, voltou ao normal. Só que não havia mais atividade cerebral, era apenas uma questão de tempo para que ele fosse legalmente considerado morto.”
Maria Teresa Fiandri, cinco filhos, três netos, todos homens, lembra de tudo, em detalhes. Ela diz ter consciência de que participou de um episódio histórico, mas não revela, no tom de voz suave e tranquilo, nenhum tipo de emoção especial, não diferente da que provavelmente teria se relatasse outros casos de pacientes que passaram por suas mãos.
E guarda, de Senna, uma imagem bem diferente daquela transmitida pelos que viram seu rosto, horas depois do acidente: “Ele chegou a mim pálido, mas belo e sereno”.
Pergunta – Doutora, em que condições Ayrton chegou aos seus cuidados, logo depois de descer do helicóptero?
Fiandri – Ele já havia recebido os primeiros socorros na pista e no helicóptero. Estava pálido, mas belo, sereno… Um jovem bonito, com os cabelos revoltos, os olhos fechados. É a imagem que guardo. Tinha um corte na testa, três ou quatro centímetros. Mais nada. Era a única ferida. Chegou ainda de macacão. Mas quando o viramos, vi que tinha muito sangue. E eu me perguntava: “mas de onde vem tanto sangue?” Saía de trás, da base do crânio. Lembro do macacão, quando lavamos, para devolver à família, tinha tanto sangue… E eu disse à Monica, uma assistente de enfermagem: “Não podemos entregar isso a eles assim”. Mas era colocar na água e a água ficar vermelha.
Pergunta – Ficou gravada na memória de todos aquele sangue na pista…
Fiandri – Foi da traqueostomia. O sangue era dele.
Pergunta – Onde a senhora estava no momento do acidente?
Fiandri – Em casa, assistindo à corrida pela TV. Quando vi a batida, e a cabeça dele caindo para o lado, já me vesti, antes mesmo de me chamarem. Nem esperei pelo bip. Sabia que seria necessária minha presença no hospital. Eu estava chegando com meu carro quando o helicóptero estava descendo.
Pergunta – Pela TV, deu para ter idéia da gravidade?
Fiandri – Pelo movimento da cabeça, eu concluí na hora que era algo muito grave. Ali ele já entrava em coma, mas o coma é um fenômeno muito estranho. Por isso foi só quando vimos o resultado da tomografia que tive certeza de que não havia nada a fazer, embora o doutor Gordini [Giovanni Gordini, que o atendeu na pista] já tivesse me avisado que não tinha volta. Aí fizemos um eletroencefalograma. Já não havia mais atividade elétrica. Quando ele chegou, o pulso estava fraquíssimo e quase sem pressão. Mas antes do eletro, tinha voltado tudo ao normal. Por isso, até ver a tomografia, quem sabe… Mas quando vimos, todos nós… Bem, aqui não há nada a fazer.
Pergunta – Já no hospital, como a notícia foi dada àqueles que estavam no 12º andar?
Fiandri – Eu me lembro de seu irmão, não sei se ele tinha noção da gravidade da situação. Eu o levei para ver os resultados dos exames. Expliquei que já não havia mais atividade elétrica. Mas quem assumiu o controle de tudo foi uma moça, que parecia tomar as decisões naquele momento [ela se refere a Betise Assumpção, então assessora de imprensa de Senna, hoje casada com Patrick Head, um dos sócios da Williams].
Pergunta – A senhora tinha a percepção de que participava, de certa forma, de um momento histórico?
Fiandri – Tinha. Mas mesmo assim, nessas horas você deixa isso de lado e segue os protocolos precisos de atendimento. A, B, C, D, todos os procedimentos. Isso ajuda a vencer a emoção. Alguns anos antes, houve um acidente de trem em Bolonha, e as primeiras vítimas que chegaram ao hospital eram crianças de 3, 4, 5 anos. Aí a disciplina é importante, senão você não faz nada. Eu fui para um canto e chorei por 30 segundos. “Agora chega”, disse. “Ao trabalho”. Com Senna, não chorei. Segurei a emoção. É uma forma de disciplina. Estávamos todos emocionados, mas isso não condicionou nosso trabalho.
Pergunta – Houve alguma chance de sobrevivência?
Fiandri – Não. Quando vimos o resultado do eletro… Bem, pela lei ele não estava morto, era preciso esperar o coração parar de bater. Mas não, não havia nenhuma esperança. Foi imediata a profundidade do coma na batida.
Pergunta – A senhora se lembra se dormiu naquela noite?
Fiandri – Em dias como aquele não se dorme sem umas 20 gotas de Valium… Era um jovem, um piloto, ele em particular, um pouco herói, carismático… Eu recebi muitas cartas do Brasil, de gente me perguntando se ele tinha recuperado a consciência… As pessoas tinham necessidade de saber algo.
Pergunta – A senhora é religiosa?
Fiandri – Não praticante. Mas penso em Deus, e isso ajuda. Depois vim a saber que ele era assim. Sabe, me parece que ele sempre achou que iria morrer jovem. “Morre jovem quem ao céu é caro”, dizem os mais antigos. Talvez se envelhecesse, não teria havido essa comoção. Ele deixou uma história que não deixaria se envelhecesse. É só uma opinião, mas eu acho que se ele pudesse escolher entre morrer jovem e envelhecer… Acho que pagaria esse preço.


FONTE PESQUISADA


GOMES, Flávio. “BELO E SERENO”. Disponível em: <http://flaviogomes.warmup.com.br/2013/05/belo-e-sereno/>. Acesso em: 01 de maio 2013.

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